Na vastidão do sertão cearense, onde a realidade muitas vezes se mistura com o imaginário popular, surgem histórias que desafiam nossa compreensão do mundo. Entre essas narrativas, destaca-se a figura enigmática de Antonio Chico, um homem cuja existência transcende os limites do ordinário e nos convida a explorar as ricas tradições orais do Nordeste brasileiro.
Antonio Chico não era uma simples lenda, mas um indivíduo de carne e osso que viveu entre as décadas de 1960 e 1980 na comunidade de Lagoa Cercada, no interior de Quixeramobim, Ceará. Conhecido por sua suposta habilidade de transformar-se em qualquer animal, tornou-se uma figura central no folclore local, inspirando tanto fascínio quanto temor entre seus conterrâneos. As histórias sobre o mesmo são tão variadas quanto intrigantes, relatos de testemunhas oculares descrevem as proezas de Antônio, como: de homem se transformar em animais domésticos, suas jornadas noturnas sob o luar do sertão e sua capacidade de cobrir grandes distâncias em questão de horas. Embora alguns vissem nele uma ameaça, a maioria o reconhecia como um homem do bem, pois o mesmo mantinha um profundo respeito por sua comunidade.
Essa narrativa não é apenas uma curiosidade local; ela representa um importante patrimônio cultural imaterial do sertão nordestino, são um reflexo direto da cultura, crenças e valores de uma comunidade, ajudando a manter viva sua identidade . Hoje, décadas após sua existência, a história de Antonio Chico continua viva na memória coletiva das comunidades circunvizinhas. Seu legado serve como um lembrete da riqueza do folclore brasileiro e da importância de preservar e celebrar nossas tradições orais. Ao resgatar e compartilhar histórias como a de Antonio Chico, não estamos apenas contando contos fantásticos; estamos mantendo viva uma parte crucial de nossa herança cultural, que nos conectam com nossas raízes, desafiam nossa percepção da realidade e nos lembram da magia que ainda existe no mundo, especialmente nos recantos mais remotos do nosso vasto Brasil.
Digo daqueles do sertão (Antônio Chico)
“Eu corro as sete partidas do mundo e me deito aqui perto onde o senhor deixa seu carro. Lembra aquele cachorro preto de ontem ali uivando? Sim! O outro dizia. Era eu mesmo a lhe vigiar”. Antônio Chico contava essas histórias com naturalidade, era de uma família de sete irmão e ele teve a incumbência de virar bicho, se transformava em tudo que fosse bicho doméstico, andava pelas estradas do sertão nas noites de lua cheia, mas tinha nele um respeito pelos parentes nunca se soube nada de ataques a pessoas de seu lugar saia mundo a fora sem paradeiro e antes da noite findar ele amanhecia em casa como se nada tivesse acontecido. Era homem de poucas palavras, mas tinha orgulho de sua profissão de virar bicho, dizia ele, basta um espojeito de bicho pra se virar na figura dele. Vó ouvia essas histórias no batente derradeiro da casa onde tinha uma espécie de tábua feita de aroeira, tão lisa dela sentar após fazer o café. Pelas horas do almoço ou no pingo do meio, lá vinha andando cangueiro com as duas mãos para trás, e os cachorros latindo, porque ele era um estranho largado, de barbas mal feitas e cabelo desalinhado, sentava no alpendre ou na área lá perto do quintal, era bom de fazer mandados e o meu avô sempre hospitaleiro gritava. “Senta aí Antônio Chico!” Ele obedecia, sentava no velho banco de madeira do alpendre e começava a contar suas aventuras para família de filhos numerosa, que ria de tais feitos e achavam ser metade fantasia, metade besteira mas nada o fazia calar. Dizia ter ido no Maranhão na noite anterior, ter passado em cantos perigosos de gente cismada com ele, teria corrido riscos de morte, mas era sua sina andar a vagar pelo vale estreito do destino, comia o que descem e se não recebesse nada também não reclamava, alguns tinham preconceitos com ele, diziam que quando se virava em cachorro corria atrás das galinhas no poleiro, ou agitava as ovelhas no cercado, mas nunca se soube de matanças de nada, uns acreditavam que tudo aquilo fosse ilusão ou esquizofrenia nos dias de hoje e com a chegada da luz de Paulo Afonso essas coisas de virar bicho tornou-se lenda.
Mas acredito piamente que aquilo tudo era verdade, ele falava de certeza e aí do vivente que duvidasse de suas andanças. Com frente a casa de oitão de meu avô Luiz, tinha um pé de benjamim enorme que cobria parte do terreiro, dizia que passava a noite a bolinar as porcas com ninhadas de bacorinho e por vezes se emparelhava com o jumento reprodutor do meu avô que de tão preto luzia no sol, vô tinha por ele uma espécie de devoção, ria de suas sandices e dizia: “se mexer com minhas criações é seu fim”, ele aflito exclamava: “Que é isso Seu Luiz! O senhor é da família, tenha medo não, que nesse trecho aqui eu não fico”. Realmente não ficava o destino dele era aquela imensidão de luar que cobria o vale forquilha, e saía a tanger pequenas serras e montes, becos de rio e pedras pontudas, furava o véu da noite com seu uivo penoso, e quando a mãe queria calar o menino danado saía a dizer: “se fizer muito arte vou chamar o Antonio Chico ele vai lhe botar num saco e levar pra onde ele for”. A meninada se pelava de medo dele, ficavam quietos com a chegada do homem, metade gente, metade mística que se assombrava com as ameaças de meu avô e seu rifle do papo amarelo pendurado pertinho do caritó.
Seu Luiz tem coragem de me matar mesmo? Perguntava ele preocupado. Vô ria com aquele olhar azul que foi puxado da bisavó Isabel, e soltava uma gargalhada. Antonio Chico tenha cuidado na tua vida! Ele calmo, reclamava: “seu Luiz é doido não, ainda sou seu parente”,ele era cismado com o rifle de meu avô sabia, que ao menor descuido meu avô o tinha na ponta da mira, mas vô era homem de paz, religioso e de boa índole, o diabo pega na mão do medo, Seu Luiz e o faz atirar, tem dessas horas que o cão atenta ele dizia: “Se preocupe não Antonio Chico, você não vai morrer de morte matada, sua sina é andar e correr pelas estradas, um dia você se aquieta na vida, meu avô tinha esses rompantes de profeta, participava ativamente da vida religiosa do lugar e era um homem de muita fé, acreditava que aquela pobre alma era realmente um ser de outra espécie, e respeitava sua índole, sabia que tinha pouco juízo e foi condenado a viver vagando, nunca foi de possuir nada, tinha essa desordem de pensamentos e nunca possuiu mulheres, não se sabia de quase nada de seus pensamentos apenas o viam como um bicho homem que se encostava nas casas pra merendar e contar seus feitos de meia noite em vante.
(Otacildo Rocha)