3 de abr. de 2025

O HOMEM QUE TOCOU FORRÓ NO INFERNO

 O texto que você está prestes a ler, "Forró na Casa do Coisa Ruim", convida-nos a uma reflexão sobre a convivência entre realidade e fantasia, resgatando histórias que animam o imaginário popular. Seja mito ou verdade, a narrativa de Felim Gato, o homem que tocou para um público insólito, ensina a importância de manter o bom pensamento, a boa palavra e o respeito às tradições antigas, como forma de honrar nossos ancestrais e preservar a essência de nosso ser. Em tempos em que a verdade se esconde sob múltiplas faces, este conto nos relembra que as boas ações e os princípios éticos sempre nos conduzirão a um lugar de luz e paz.

À medida que exploramos estas páginas, sejamos inspirados a olhar além do superficial, buscando em cada história a sabedoria que nossos antepassados tão carinhosamente preservaram para nós. Que a leitura nos guie a uma reflexão sobre o poder das palavras e das ações gentis, demonstrando que, mesmo em meio ao mistério, o respeito e a verdade devem prevalecer.

Apresento-lhes, mais uma História narrada por Otacildo Rocha.

                                                                                                              Edgleson Lima


Forró na Casa do Coisa Ruim

Na comunidade de Jardim, zona rural de Quixeramobim - Ceará, um lugar agradável às margens do riacho Forquilha, vivia um senhor simpático, por vezes sério, tão magro que causava pena. Tinha olhos cativos e fundos, de um azul intrigante e calmo. As rugas dos braços pendiam devido ao tempo de vida. Gostava de ficar no alpendre à tarde para bulinar os dedos nos punhos da rede e, por vezes, num tamborete sempre encostado ali por perto. Tinha ritmo nos dedos e se balançava, lançando seu olhar profundo nas coisas superficiais.


Seu nome era Felim Gato. O sobrenome, na verdade um apelido, era comum a toda família. Veio do "Santo Gato" da velha geração e depois passou à nova, que não eram santos, mas gatos. Isso ainda acontece no sertão: se o pai tem um apelido marcante, os filhos o acompanham por serem "filho de fulano de tal". Da família dele havia Zé Gato, Mané Gato e outros gatos menos conhecidos, que não convém citar, pois a família ali era numerosa e abastecia toda a cercania. Um exemplo: o filho de seu Felim, afilhado de minha avó, era Antonio do Felim Gato. Uma curiosidade marcante é que quase todos tinham nomes de santos.


Dona Virginia, a esposa de Felim, era irmã de minha avó, que a chamava de comadre Vigina. Eu a chamava de tia Vigina. Minha avó dizia que uma vez ela se recusou a receber a fortuna de uma alma penada. Nesse tempo, acreditava-se que as almas voltavam do além para mostrar a certas pessoas um dinheiro guardado, muitas vezes nas casas antigas, embaixo de tijolos ou batentes. Era obrigação das almas voltar, sob pena de arderem no fogo do inferno.


Uma dessas almas apareceu para tia Vigina. Ela, de tão honesta e orgulhosa de sua honestidade, gritava: "Não quero fortuna de ninguém, só quero o que é meu!" A alma insistia, aparecendo para ela sempre no mesmo horário. Vigina recusou e, ao final, a alma lhe disse: "Não olhe para mim quando estiver saindo." Ela olhou e viu o corpo da alma em chamas se perdendo na escuridão da madrugada. O povo daquele tempo era criado com regras, tinha suas virtudes, principalmente em casos de posses ou dinheiro. Se não fosse conseguido com suor, não era sagrado.


Voltando a Felim, seu esposo, este tinha uma cicatriz em uma das pernas e uma história curiosa por trás daquela ferida que nunca curava. Certa feita, quando ainda rapaz, ele se pôs a tocar acordeão. Arrumou uma pé de bode e animava os terreiros do lugar. Às vezes era chamado para tocar, outras vezes saía sozinho sem destino, sem dizer para onde ia.


Numa dessas vezes, ele selou o bom cavalo que tinha, pegou a pequena sanfona e a lançou nas costas ao anoitecer. A mãe, preocupada, gritou: "Meu filho, você vai tocar aonde?"


"Mãe, do jeito que estou arretado hoje, se me pagarem, vou tocar até no inferno", respondeu ele.


A mãe, assustada, retrucou: "Bate nessa boca, menino! Não diga má palavra!"


Ele, que estava calado, calado ficou. Saiu a galopar no seu cavalo de marcha mansa. A família de Santo Gato sempre teve traquejo com animais; eram todos alinhados e bem conservados. Seus cavalos eram respeitados no lugar pelo fino trato e mansidão.


Felim deu nas rédeas e o cavalo saiu obediente pelas estradas escuras. Na primeira entrada rumo à várzea de cima, havia um grande pé de juazeiro onde costumeiramente as pessoas ficavam para se abrigar da chuva ou do sol. Diante dele, um sujeito muito bem vestido, de chapéu e cara solene, o interpelou:


"Para onde o senhor vai tão apressado?"


"Procurando diversão", ele disse.


"Quero que toque na minha casa."


"Me pagando, eu toco em todo lugar", respondeu Felim.


O outro respondeu: "Pois bem, entre nessa vereda e faça carreira. Encontrará uma casa com um portão de ferro à frente. O portão se abrirá e você siga o rumo da venta. Lá dentro, a casa estará cheia. Comece a tocar e não se preocupe, será bem recompensado ao final."


Felim fez tudo que o desconhecido disse e foi seguido por ele. Viu o portão negro e lá dentro um mar de gente o aguardava. Sentiu uma espécie de sombroso na hora, mas não se apequenou. Puxou seu fole e danou-se a tocar sem se ater ao fato de que andava em terras estranhas. A multidão animada puxou por ele e tudo estava correndo dentro da normalidade. Notou que o tempo não andava e a noite nunca chegava a seu fim. Os dedos começaram a doer de tanta música, mas a multidão pedia bis.


Foi então que notou algo errado: alguns deles tinham rabo e outros, chifres. Não era gente desse mundo, certamente. A música o tinha inebriado, mas a realidade começou a aparecer diante de si. Levantou-se para ir embora, mas a reação negativa dos donos da casa o interpelava.


"Não, o senhor só vai embora quando o sol sair. Será bem recompensado, pode ter certeza", diziam. Felim tocava e nada do sol dar notícias. Num desses intervalos, ele sacou sua sanfona, fez finca-pé e danou a correr no meio daqueles seres estranhos. Foi então que um deles gritou: "Atalha o homem, que ele está fugindo!"


Muito depressa, Felim pulou no seu cavalo, que ligeiro obedeceu às esporas. Ao ver o grande portão, ele se abaixou como quem vai derrubar uma rês. Na passagem, um dos seres empurrou o portão para fechá-lo rápido, e foi nesse instante que sua perna foi atingida, provocando o ferimento.


Esse fato foi narrado muitas vezes por ele ao longo de sua vida, e até hoje o pé de juazeiro está lá, sendo citado por muitos como a entrada para o inferno. Quando contava esse fato, Felim dizia ter visto nessa festa muita gente do lugar que já tinha morrido há anos. Gente conhecida, dizia com graça. Não sei se era por ironia ou por pura loucura, até citava o nome de alguns. Isso não o fez parar de tocar. O que o intrigou realmente foi que alguns tinham rabos e chifres. Disse que correu com medo de ficar lá para sempre.


Anos depois, ao ler a Divina Comédia, lembrei-me dessa história de Felim e me perguntava: "Será que Dante fez o mesmo trajeto?" Esse morador humilde do Jardim nunca leu a Divina Comédia. Ouvia contar relatos de Lampião no inferno pelos poetas de cordel, e ele não era homem de meias verdades. Contava tudo aquilo com muita certeza, e o que me intriga é que o trajeto citado por ele ainda hoje está lá: a estrada, as árvores e cercas pelo caminho.


Já no fim de sua vida, o povo dizia que ele guardava dinheiro por dentro dos matos. Saía ao fim do dia sempre sozinho. Se alguém o via, ele torcia o caminho e entrava misteriosamente em outras direções. Do nada sumia. Carregou essa sina de viver envolto em mistérios que, para mim, não eram lendas. Como escreveu o poeta Fernando Pessoa, "grandes são os desertos e tudo é deserto".


                                                                                                            

                                                                                                                  Otacildo Rocha